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O Estado Democrático de Direito é mais do que uma cláusula retórica na Constituição de 1988: é a espinha dorsal que sustenta todas as demais instituições, direitos e garantias. Quando ele é atacado, o próprio pacto civilizatório se vê em risco. Foi sob essa ótica que o Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria, condenar o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro na Ação Penal nº 2668, que apurava sua participação na chamada “trama golpista”. A decisão, longe de ser um ato de revanche política, representa a reafirmação de que a democracia não é neutra diante de tentativas de sua destruição.
Com a Lei 14.197/2021, o Código Penal passou a prever, de forma clara, crimes contra o Estado Democrático de Direito — como a tentativa de golpe de Estado (art. 359-M) e a abolição violenta do regime democrático (art. 359-L). Esses tipos penais foram pensados exatamente para situações em que agentes públicos ou privados, por ação ou omissão dolosa, buscam romper a ordem constitucional. Ao aplicar esses dispositivos, o STF reconheceu que houve atos de execução concretos, articulados em rede, que colocaram em perigo real a normalidade institucional, indo muito além de meras palavras ou críticas políticas.
Não se pode esquecer que os atos de 8 de janeiro de 2023 foram a face mais visível e dramática dessa escalada antidemocrática. Naquele dia, as sedes dos três Poderes da República foram invadidas e depredadas, em uma tentativa clara de inviabilizar o funcionamento das instituições e gerar um estado de anomia. Esse evento não foi um ato isolado, mas o ponto culminante de uma cadeia de omissões, incentivos e discursos que, segundo a maioria do STF, encontraram em Bolsonaro um elemento de liderança política e simbólica. A resposta jurisdicional firme busca evitar que episódios dessa gravidade se repitam, funcionando como um mecanismo de prevenção geral e de reafirmação do pacto constitucional.
Sob uma perspectiva garantista — e aqui se retoma a lição de Ferrajoli — "a função do Direito Penal é proteger bens jurídicos fundamentais, e nenhum é mais essencial do que a própria democracia, pois dela dependem todos os outros". A decisão majoritária foi cuidadosa ao identificar os elementos de tipicidade, dolo e nexo causal, mostrando que não se tratava de responsabilização coletiva ou de “culpa por associação”, mas de imputação individual baseada em provas robustas. O STF também reafirmou o devido processo legal e a ampla defesa, garantindo às partes acesso aos autos, possibilidade de manifestação e contraditório efetivo.
Ainda assim, a divergência do ministro Luiz Fux merece registro. Em voto técnico e bem fundamentado, ele defendeu a absolvição de Bolsonaro, argumentando que faltaria demonstração clara de atos executórios suficientes para configurar os crimes imputados. Fux também manifestou preocupação com o volume de provas apresentado em fase avançada da instrução, o que, em sua visão, poderia caracterizar cerceamento de defesa. Embora suas ponderações tragam alerta válido sobre os limites da persecução penal, a maioria entendeu que a gravidade dos fatos e a consistência do conjunto probatório eram suficientes para superar tais objeções.
O julgamento da AP 2668 não encerra o debate, mas inaugura uma nova etapa na história constitucional brasileira. Ele estabelece que a democracia é um bem jurídico penalmente tutelado e que sua proteção exige, em casos extremos, a intervenção do Direito Penal. Essa é uma mensagem pedagógica à sociedade e aos futuros governantes: a liberdade de expressão e a disputa política são inegociáveis, mas, em hipótese alguma, autorizam a destruição das instituições.
Mais do que punir indivíduos, o que está em jogo é a preservação de um projeto coletivo de convivência. A democracia brasileira sobreviveu a mais um teste de estresse institucional. Que essa decisão sirva não como combustível para a polarização, mas como reforço da ideia de que o jogo democrático tem regras — e que, quando elas são violadas, há consequências.
Porto Alegre/RS, 15 de setembro de 2025.
Dr. Raphael Lara - OAB/RS 136.667